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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Lisboa paraíso claro e triste de Antoine de Saint-Exupéry

Em 1940 Antoine Saint-Exupéry, o criador do Principezinho, passou por Lisboa.

Escapou de Vichy par rumar aos Estados Unidos, com o objectivo de continuar a lutar contra o invasor do seu país (ver AQUI)...

Acabaria por perder a vida na guerra fazendo o que mais gostava de fazer: VOANDO.

Da sua passagem por Lisboa ficou um retrato no livro "Carta a um Refém" publicada em 1942.

Entendi que, no dia em que começa em Lisboa uma conferência dedicada a Portugal e ao Holocausto, era importante deixar o texto de um refugiado ilustre que passou pelo país e onde este fala do que viu e dos outros refugiados com que se cruzou... 

O livro reúne um conjunto de textos escritos inicialmente para prefaciar a obra de um amigo judeu. Esse trabalho não seria publicado, mas como este último estava “refém” em França, o autor do Princepezinho deu esse título à publicação.

Saint-Exupéry fala, no primeiro capítulo, da sua passagem por Lisboa e dos contrastes que encontrou.

Não é um retrato bonito, mas também era difícil de esperar isso de alguém que vinha de um mundo em guerra, de uma Europa com pouca esperança e de um país invadido.

Não consegui encontrar uma versão portuguesa do livro. O texto foi traduzido utilizando uma cópia do texto original que está disponível "on-line" para "download" (ver AQUI)…

Confesso que esperava que o meu francês estivesse bem melhor. A ajuda de um tradutor on-line foi essencial para chegar ao resultado que aqui apresento.

Alterei algumas frases e adaptei-as, utilizando o meu senso comum, para que tivessem o sentido que julgo Saint-Exupéry lhes queria dar…

Julgo que deixo um texto legível e compreensível, mas não pretendo arvorar uma capacidade de tradutor que não tenho… senti várias vezes que a profundidade das palavras de Saint-Exupéry me escapava entre os dedos, quando tentava passa-las do Francês para o Português.


Com esta ressalva acredito, no entanto, ter conseguido extrair o essencial. Se assim não for peço desde já desculpa aos leitores…



Saint-Exupéry, Carta a um Refém

Quando em Dezembro de 1940 atravessei Portugal para ir aos Estados Unidos, Lisboa pareceu-me uma espécie de paraíso claro e triste. Falava-se muito de uma invasão iminente e Portugal agarrava-se à ilusão da felicidade. 

 Lisboa, que organizara a mais bela exposição do mundo, sorria um sorriso um pouco pálido, como o das mães que não têm quaisquer notícias do filho ausente na guerra e se esforçam por salvá-lo mostrando confiança: "O meu filho continua vivo desde que eu sorria...", "Vejam, dizia Lisboa, como estou feliz, tranquila e bem iluminada..."

O continente inteiro cercava Portugal como uma montanha selvagem, carregada de tribos predatórias; Lisboa em festa desafiava a Europa: "Poderá alguém tomar-me por alvo quando não tenho sequer cuidado em esconder-me? Quando estou tão vulnerável!..."

À noite as cidades da minha terra tinham a cor da cinza. Estava desabituado da claridade e esta capital radiosa causava-me um ligeiro desconforto. 

Quando é escura a vizinhança, os diamantes da montra muito iluminada atraem os assediadores. Sentimo-los a circular. 

Sentia, contra Lisboa, o peso da noite Europeia povoada por grupos de bombardeiros errantes, como se já tivessem farejado, ao longe, aquele tesouro. 

Mas Portugal ignorava o apetite do monstro. Recusava-se a acreditar nos maus sinais. 

Portugal falava de arte com uma confiança desesperada. Haveria quem ousasse esmagá-lo durante o culto da sua arte? Exibia todas as suas maravilhas. Haveria quem ousasse esmagar essas maravilhas? 

Exibia os seus grandes homens. À falta de um exército, à falta de canhões, erguera contra o ferro do invasor todas as suas sentinelas de pedra: os poetas, os exploradores, os conquistadores. 

À falta de exército e canhões, todo o passado de Portugal barrava a estrada. Haveria quem ousasse esmagar a herança de um passado tão grandioso? 

Noite após noite eu errava com melancolia através dos sucessos dessa exposição de extremo bom gosto onde tudo roçava a perfeição, até a música, tão discreta e escolhida com tanto tacto, que nos jardins fluía docemente, como o murmúrio de uma fonte. Haveria no mundo quem queisesse destruir esse maravilhoso bom gosto? 

Mas por baixo do sorriso, eu achava Lisboa mais triste que as minhas cidades longínquas. 

Conheci, e vós talvez também, daquelas famílias, um pouco excêntricas, que mantêm à mesa o lugar dum morto. Elas negam o irreparável. Não julgo que tal hábito console. Dos mortos devemos fazer mortos. Eles, no seu papel de mortos, recuperam então outra forma e presença. Mas aquelas famílias suspendem o seu regresso. Fazem deles ausentes eternos, convivas em atraso para toda a eternidade. Trocam o luto por uma espera sem sentido. E essas casas perecem-me mergulhadas num mal-estar sem perdão e tão abafado como o desgosto. 

Pelo piloto Guillaumet, o último amigo que perdi, abatido no serviço postal aéreo, meu Deus! Consenti pôr luto. Guillaumet nunca mudará. Não voltará a estar presente, mas também não estará ausente. Sacrifiquei o seu lugar à mesa, essa armadilha inútil, e fiz dele um verdadeiro amigo morto. 

Mas Portugal tentava acreditar na felicidade mantendo-lhe o lugar, conservando os seus candeeiros e a sua música. Em Lisboa representava-se a felicidade para que Deus acreditasse nela. 

Lisboa devia o seu clima de tristeza também à presença de certos refugiados. Não me refiro a proscritos em busca de asilo. Não falo de emigrantes à procura de uma terra para fecundar com o seu trabalho. 

Falo dos que se expatriam para longe da miséria dos seus, a fim de manter o seu dinheiro salvaguardado.

Não consegui alojamento mesmo na cidade e fiquei no Estoril, junto do casino. 

Tinha saído de uma guerra intensa: o meu grupo aéreo, que durante nove meses não interrompeu os voos sobre a Alemanha, perdera, no decurso da ofensiva alemã, três quartos das suas tripulações. 

De volta a casa sentira a soturna atmosfera da escravidão e a ameaça da fome. Vivera a noite espessa das cidades. 

E eis que, a dois passos, o Casino do Estoril em cada noite se povoava de espectros. Cadillac’s silenciosos, que fingiam dirigir-se a um qualquer lugar largavam-nos na areia fina do pórtico da entrada. 

Tinham-se vestido para o jantar como noutros tempos. Exibiam as gravatas ou as pérolas. Convidavam-se uns aos outros para refeições, como figurantes, onde nada tinham para dizer. 

 Depois jogavam à roleta ou ao bacará, conforme as fortunas. Por vezes ia vê-los. Não sentia indignação, nem ironia, mas uma vaga angústia. A que nos assalta num jardim zoológico perante os sobreviventes de uma espécie em extinção. 

Instalavam-se em redor das mesas. Apertavam-se de encontro a um croupier austero e esforçavam-se por experiênciar a esperança, o desespero, o medo, a inveja e a satisfação. Tal como seres vivos. 

Jogavam fortunas que talvez naquele minuto já se encontrassem esvaziadas de significado. Usavam dinheiro que talvez já tivesse caducado. Talvez o valor dos seus cofres, fosse garantido por fábricas já confiscadas ou, ameaçadas como estavam pelos bombardeamentos aéreos, em vias de ruína. 

Construíam castelos de areia. 

Esforçavam-se, em memória do passado, em acreditar que nada tinha mudado nos últimos meses, que a sua terra não tinha estalado debaixo dos pés, criam na legitimidade da sua linhagem, na cobertura dos seus cheques, na eternidade das suas convenções. 

Era irreal. Lembrava um verdadeiro baile de bonecas. Porém era triste. 

Com certeza não sentiam nada. Eu abandonei-os. 

Fui respirar à beira mar. E esse mar do Estoril, mar de cidade de banhos, mar domesticado, também a mim me parecia entrar no jogo. Empurrava para o golfo uma vaga única e mole, toda luzidia de lua, como se fora um vestido fora de época. 

Reencontrei-os no navio, os meus refugiados. 

Aquele navio transpirava, também, uma certa ansiedade. Aquele navio levava de um continente para outro, essas plantas sem raízes. 

Eu disse: "Quero ser um viajante, não quero ser um emigrante. Aprendi tantas coisas desnecessárias sobre mim mesmo”. 

Mas agora os meus emigrantes tiram do bolso pequenos livros de endereços, cacos da sua identidade. Eles julgam ainda ser alguém. Agarram com toda as forças algum significado. "Você sabe, eu sou uma, segundo eles, sou de uma cidade tão... sou amigo de um tal... você conhece pessoa tal…? 

Contam a história de um amigo, a história um acontecimento, a história de qualquer falha ou outra história que os liga a qualquer coisa. Mas nada desse passado, depois de expatriados, lhes serve de alguma coisa.

Está ainda tudo quente, tudo fresco, tudo vivo, como as primeiras lembranças do amor. 

Fazem um pacote de cartas ternurentas. Juntam algumas memórias. Amarram tudo com muito cuidado. E aquela relíquia desenvolve um charme melancólico. 

Depois passa uma loira de olhos azuis, e a relíquia morre. 

Tal como a namorada, a responsabilidade, a cidade natal, as lembranças de casa desvanecem-se e já não servem. 

Eles sentiam-se bem. Da mesma forma que Lisboa jogava com a felicidade, eles também acreditavam que voltariam logo. 

É doce, a ausência do filho pródigo! É uma falsa ausência, porque para além dele, a casa da família permanece. 

Não é essencialmente diferente que esteja ausente na sala do lado ou do outro lado do planeta. 

A presença do amigo aparentemente remoto, pode ser mais próxima do que a presença real. É como aquela presença na oração. 

Eu nunca amei mais uma casa minha que a do Saara. 

Nunca as noivas estiveram mais próximas dos seus amados, que as dos marinheiros bretões do século XVI, enquanto eles dobravam o Cabo Horn, envelhecendo enfrentando uma parede ventos contrários. 

Desde a partida que estavam a regressar. É o regresso que eles preparavam quando as suas mãos pesadas içavam as velas. 

O caminho mais curto do porto da Bretanha para a casa da noiva passava pelo Cabo Horn. 

Mas eis que os meus emigrantes me pareciam os marinheiros bretões a quem tinham roubado a noiva na Bretanha. 

Nenhuma noiva bretã acendia por eles, à janela, uma humilde luz. 

Eles não eram como os filhos pródigos. Eles eram uns filhos pródigos, mas sem casa para voltar. 

Começavam a verdadeira viagem, para fora de si mesmo. 

Como se reconstruir? 

Como se refazer no emaranhado pesado de memórias? 

O navio fantasma ia carregado, como no limbo, de almas por nascer. Apenas pareciam reais, tão reais que poderiam ser tocados com um dedo, e aqueles que incorporavam o navio, enobrecidos por funções reais, levavam as bandejas, poliam o latão dourado, engraxavam os sapatos, e com um vago desprezo, serviam os mortos. 

Não era a pobreza dos emigrantes que merceia o ligeiro desdém do pessoal. 

Não era o dinheiro que lhes faltava, mas a densidade. 

Eles não eram mais o homem da tal casa, com o tal amigo, com a tal responsabilidade. 

Eles desempenhavam um papel, mas não era verdadeiro. 

Ninguém mais precisava deles, ninguém mais lhes ia pedir nada. 

A maravilha de receber um telegrama perturbador, que nos levanta a meio da noite e nos empurra para a estação dos comboios: "Apressa-te! Eu preciso de você!” 

Depressa descobrimos amigos que nos ajudam. Acudimos àqueles que necessitam de ser ajudados.

Ninguém odeia, ninguém tem ciúmes, ninguém se preocupa, certamente, com os meus fantasmas. 

Ninguém os amava mais daquela forma que verdadeiramente importa. 

Dizia-me, "eles serão levados à chegada, para coquetéis de boas-vindas, jantares de consolação". Mas qual baterá a uma porta exigindo ser recebido: "Abra! Sou eu!" 

É preciso amamentar muito tempo uma criança para que esta passe a exigir. 

Temos de cultivar uma amizade durante longo tempo antes que se exija uma dívida de amizade. 

É preciso que um velho castelo se arruíne durante gerações para que o conserto da ruína seja um acto de amor. 

(...)


Uma boa semana
Carlos Guerreiro 

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